sexta-feira, 11 de março de 2011

Livro que faz chorar....


Uma livreira me contou. Um pai comprou o livro O Patinho Que não Aprendeu a Voar para o seu filho. No dia seguinte voltou muito bravo, trazendo o livro de volta. "Meu filho chorou ao final do livro. Ainda chora quando se lembra do patinho que não aprendeu a voar. Isso é livro para se dar a uma criança?"

Eu compreendo. Ele quer que seu filho só tenha alegrias. Ele quer que os livros que seu filho lê sejam engraçados e façam rir. As crianças não deveriam ler livros que fazem chorar.
Mas tristeza não é coisa ruim. A poesia brota da tristeza. Escrevi muitas estórias alegres e que fazem rir. Mas as que mais amo são aquelas que fazem chorar.

Por que é que o menininho chorou? Porque ele sentiu aquilo que minha neta sentiu. Vocês se lembram do que ela falou, em meio às lágrimas: "Vovô, eu não consigo ver uma pessoa sofrendo sem sofrer. Quando vejo uma pessoa sofrendo o meu coração fica junto ao coração dela...". Ela e o menininho sentiram compaixão. Seus corações ficaram junto ao coração de alguém ou de algum bichinho que estava sofrendo. Sofreram um sofrimento que não era seu.

Tenho estado a me perguntar: como ensinar a compaixão? De que vale conhecimento sem compaixão? Somente o conhecimento com compaixão cria a bondade. E uma sociedade onde não existe a bondade não é digna de que vivamos nela. Como a nossa, em que a bondade foi espremida nos cantos e as ruas se encheram de medo.

Gandhi relata que a experiência que mudou o seu coração foi a leitura de um livro. Ele era ainda um adolescente. O livro o comoveu tanto que ele queria ser como o herói, nobre e generoso. Esse sentimento o acompanhou pelo resto de sua vida. Seu coração ficou junto ao coração do herói. E não importava que o herói nunca tivesse existido, que fosse apenas uma ficção literária. Pois é isso que a literatura faz: ela se desprega da vida real para dar-lhe um sentido.

Livros engraçados são bons. O riso tem a importante função de mostrar que o rei está nu. Mas não conheço nenhum caso de uma pessoa que tenha sido transformada por um livro engraçado. O riso provoca crítica, mas não provoca compaixão.

Pensei então que essa poderia ser uma das maneiras de se ensinar compaixão: lendo-se para o aluno ouvir. Mas para que as estórias façam os seus milagres é preciso que o ouvinte seja possuído pelas palavras e levado ao sabor da voz de quem lê a estória.

Fiquei então pensando que seria melhor que gastássemos menos tempo com gramática e análise sintática, e mais tempo com a leitura. Leitura sem testes de compreensão, sem interpretações, o que é que o autor queria dizer etc. Pura emoção. Um texto não interpretado permanece vivo para sempre, como um enigma que nos comove todas as vezes que o lemos. Mas um texto interpretado é um texto esgotado do seu mistério, esquartejado sobre a mesa de anatomia da linguagem.

Eu gostaria de conversar com o pai do menino que chorou ao ler O Patinho Que não Aprendeu a Voar. O menino entendeu. Sentiu compaixão. Mas o pai não entendeu. Ou, quem sabe, ele ficou bravo não pelo choro do seu filho, mas por ter, ele mesmo, sentido vontade de chorar — mas não chorou de vergonha...



Rubem Alves

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