domingo, 11 de setembro de 2011

Angustias da alma

As angústias da alma nos jogam de um lado para o outro e não sabemos se nos basta um calmante ou uma oração, ou ambos. Não se sabe se o apelo vem da imanência ou da transcendência. Não é possível distinguir o necessário: o pão ou a providência, o aplauso ou o significado, o sexo ou o afeto, o prazer ou o arrebatamento. Na verdade, não sabemos sequer se uns existem sem os outros, ou, por exemplo, onde estará o afeto sem o toque, a providência sem a mesa posta, a realização sem o reconhecimento, o significado sem a aprovação, o êxtase sem a sensação. Pode o faminto experimentar a segurança; a presença conviver com a solidão; o útil permanecer anônimo? Angústia é o estado de quem está diante de “um afluxo incontrolável de excitações muito variadas e intensas a que é incapaz de responder”; pelo menos foi o que disse o Houaiss. Alma é o conjunto indissociável formado pelo corpo e o espírito humano: pó da terra + fôlego da vida = alma vivente, conforme o Gênesis, livro da Bíblia Hebraica que narra a origem da raça humana. As angústias da alma implicam, portanto, um inevitável estado de excitamento diante de incontáveis possibilidades, tanto para o corpo quanto para o espírito: a dança da alma diante do efêmero e o eterno, o singelo e o sublime, o animal e o divino, a terra e o céu, que se entrelaçam numa unidade de mútua afetação, pois o que o corpo experimenta toca o espírito e o que o espírito penetra faz tremer o corpo. As angústias da alma nos jogam de um lado para o outro e não sabemos se nos basta um calmante ou uma oração, ou ambos. Não se sabe se o apelo vem da imanência ou da transcendência. Não é possível distinguir o necessário: o pão ou a providência, o aplauso ou o significado, o sexo ou o afeto, o prazer ou o arrebatamento. Na verdade, não sabemos sequer se uns existem sem os outros, ou, por exemplo, onde estará o afeto sem o toque, a providência sem a mesa posta, a realização sem o reconhecimento, o significado sem a aprovação, o êxtase sem a sensação. Pode o faminto experimentar a segurança; a presença conviver com a solidão; o útil permanecer anônimo? De noite na cama, custo a pegar no sono, pois minha mente não para, meu corpo não aquieta, meu espírito não silencia. O coração acelera, a criatividade dispara, as preces se multiplicam. Outra noite percorri mentalmente, passo a passo e em ritmo lento, os 2 Km que percorro quase diariamente em minhas corridas matinais. Adormeci. Meu exercício predileto, no entanto, é me imaginar andando sobre as nuvens, calça larga e arregaçada de um algodão leve bege clarinho e um camisão tipo bata, branco, escorrendo para fora da calça. Diante de mim um imenso arquivo de madeira, branco patinado, com gavetas abertas e em cada gaveta uma etiqueta com a inscrição de um objeto de minhas preocupações, ansiedades, sonhos, responsabilidades e amores: uma gaveta para mim, uma para meu filho, minha mãe, meu pai, meu trabalho, meus amigos, meu futuro, e o paradoxo do mundo distribuído em incontáveis gavetas, que percorro lentamente até mergulhar no sono. Caminho lentamente entre as nuvens, como que flutuando, com o único esforço de fechar cuidadosamente cada gaveta, num gesto de gratidão, devoção e consagração: fechar a gaveta é entregar seu cuidado às mãos de Deus. Assim oro todas as noites. Assim vou desacelerando a alma, diminuindo e cadenciando o coração, tratando cada fantasia e administrando cada conflito... Assim oro todas as noites. E durmo sem saber quais gavetas ficaram por fechar. Mas a cada manhã, com o sol, também se levanta minha alma. E com ela suas angústias. E sobre tudo, a misericórdia e a bondade de Deus, que me seguem todos os dias da vida. A alma angustiada retoma seu caminho, põe o pé na estrada, mangas arregaçadas, até deitar-se à noite, com o coração batendo acelerado, a mente rodando em velocidade incalculável e o esboço do dia seguinte rabiscado na tela da madrugada. As gavetas estão todas abertas novamente. E lá se vai o andarilho das nuvens, fechar uma por uma, de novo e mais uma vez, até que as luzes se apagam. Todo dia, toda noite. Tudo jamais igual. Os encontros e desencontros do dia estão nas primeiras gavetas: frases pela metade, falas desconexas, palavras mal-ditas; vergonhas e virtudes; pessoas – de perto, de longe, de sempre; tarefas inacabadas e projetos deflagrados; mais vontades, mais planos, mais promessas, mais, e cada vez mais. Mas as gavetas mais pesadas e difíceis de empurrar são as que carrego comigo durante a caminhada diária. Pego cada uma delas todas as manhãs e as levo para a luz do dia. Nem sempre consigo coloca-las no armário branco do chão das nuvens, e quando ficam amontoadas ao pé da cama, são prenúncio de noites mal dormidas. São estas as maiores angústias. E delas ainda não consegui me livrar completamente. São três as gavetas pesadas: a gaveta da integridade, da criatividade, e da legitimidade. Minha gaveta da integridade é muito pesada: o esforço sem tréguas, para preservar o coração puro e as mãos limpas. Manter distantes coisas como a inveja, a ganância e a cobiça; o ódio, a mágoa e o ressentimento; o cinismo, a desesperança e a incredulidade; a preguiça, a indolência e a displicência; o orgulho, a vaidade e a prepotência. Conviver com olhares, cartazes e esbarrões; propostas, ofertas e insinuações; possibilidades, oportunidades e devaneios; promessas, presentes e pretensões; notícias, informações e presságios; eu, tu, eles – nós, todo dia, toda hora... viver é mesmo muito perigoso, digo, maravilhoso. A outra gaveta, da criatividade, não pesa menos: o trabalho incessante para conseguir “the master piece”, a obra prima, o grande feito, a grande sacada, o grande insight, a tacada de mestre. Provavelmente isso tem a ver com o anseio por relevância, aquela coisa de deixar um legado, oferecer o melhor dos talentos e habilidades para o bem comum. Talvez, em termos mais infantis ou egocêntricos mesmo, algo como escrever na porta do banheiro do museu em New York “ eu estive aqui”. Que loucura isso de desejar ser contado entre os gênios da raça... viver é mesmo muito cansativo, digo, criativo. A última gaveta é mais uma idiossincrasia, uma encucação particular e bem pessoal. Ou, quem sabe, coisa de consciências mais sensíveis. A meu respeito, prefiro a primeira opção; concedo a segunda para pessoas como você. Trata-se da gaveta da legitimidade. Advirto que somente pessoas que se julgam privilegiadas têm que abrir e fechar esta gaveta – ou carregá-la. No meu caso, sofro muito com ela. Desde sempre acredito que Deus marcou um “x” nas minhas costas e colocou alguns anjos especiais no meu encalço. Tenho mais do que preciso e, graças à bondade dos amigos e de pessoas que querem demonstrar sua gratidão para comigo sem que eu nem mesmo saiba o que foi que fiz, acessos que meu dinheiro jamais pagaria. Tenho uma vida boa e me considero feliz e realizado. As coisas onde ponho a mão, geralmente dão certo, e raramente ouço “não” como resposta (sim, é verdade, não peço muito). O problema disso é que toda vez quando me dou conta da minha bem-aventurança, lembro da desventura dos outros. Outro dia li que 7 dólares prorrogam a vida de uma criança por uma semana em algum canto do terceiro mundo. Pronto, já não consigo ir ao cinema sem considerar a legitimidade de gastar para curtir o último filme do mmento, regado à pipoca e chá gelado. A questão é: num mundo de desigualdades e sociedades miseráveis, o que se pode considerar um prazer legítimo? E me diga lá, por que minha vida – que já foi, sim, tocada pela tragédia – é tão boa, enquanto a de outros – inclusive os que eu amo – sofrem tanto? Enfim, uns com tanto, e outros com tão pouco... viver é mesmo muito injusto, digo, gratificante. Por essas e outras é que minha alma vai dormir exausta. E haja gaveta pra fechar... Por enquanto, sigo meu caminho sob o epitáfio da Olga Benário: lutando pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo.

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